TODOS ELES ESTÃO ERRADOS




Felipe Fortuna


Para muitos artistas, a ciência e a tecnologia têm a capacidade de destruir ideais, símbolos e metáforas. Confrontando-se às inovações e às descobertas tecnocientíficas, a poesia manifesta uma crítica à perda da beleza e da inocência, o que já possui até mesmo a sua tradição: recordem-se, por exemplo, as objeções do romântico John Keats às teses de Isaac Newton sobre a decomposição da luz:

Não fogem todos os charmes

Ao mero toque da fria filosofia?

Havia um deslumbrante arcoíris no céu.

Agora sabemos seu limite, sua textura, pois o inseriram

No aborrecido catálogo das coisas comuns.


Perda – eis a palavra que vem à mente de tantos artistas quando diante dos avanços e do progresso. Mas o sentimento de aversão aos resultados das técnicas e da ciência pode, em alguns casos, ter caráter contraditório, como se o artista estivesse a defrontar uma nova beleza e uma nova inocência.

Em 1966, na canção “Lunik 9”, Gilberto Gil conclamava os seus ouvintes:

Poetas, seresteiros, namorados, correi!

É chegada a hora de escrever e cantar

Talvez as derradeiras noites de luar.


Já no título da canção, Gilberto Gil se refere a um módulo do programa espacial soviético, o primeiro a alcançar a superfície da Lua e a transmitir dados fotográficos para a Terra. Não é cabível, porém, que a chegada daquele artefato à Lua esteja relacionada às “derradeiras noites de luar”, como quer o compositor. Porém, essa idéia é ainda reforçada ao final da canção, quando se ouve:

Talvez não tenha mais luar

Pra clarear minha canção.

O que será do verso sem luar?


Para o compositor, essa é a razão da tristeza – “uma tristeza só” que lhe restou. Mas, como já se percebeu, a conquista da Lua traz consigo novas amplitudes e dimensões, até então impensáveis mesmo para os que lidam com ideais, símbolos e metáforas: afinal, o que seria a Lua, a partir de então? O seu conhecimento técnico e científico poderia provocar novas imagens, ou apenas destruir as existentes? Foi provavelmente por isso que Gilberto Gil, todo ambíguo, escreveu na mesma canção:

A lua foi alcançada afinal.

Muito bem,

Confesso que estou contente também.

Assim se resume o impasse: perda ou ganho?

Embora sem a dimensão sarcástica, a canção “Lunik 9” contém elementos da marchinha “A Lua é dos Namorados”, composta por Armando Cavalcanti, Klecius Caldas e Brasinha, e lançada em 1961:

Todos eles estão errados

A lua é dos namorados.



Lua, oh lua

Querem te roubar a paz.

Lua, oh lua

Não deixa ninguém te pisar.


Obviamente, a crítica à conquista da Lua se concentra, no caso da marchinha, bem menos nas questões de ciência e tecnologia e muito mais nas questões de política: estava em jogo, no ambiente bipolar, a disputa entre os EUA e a então URSS pela presença do primeiro homem no satélite (“um pequeno passo para o Homem, um grande salto para a Humanidade”, nas palavras do astronauta Neil Armstrong, em 1969). Qualquer que fosse o resultado do confronto entre as duas potências, estaria perdido o ideal de um satélite sem dono e destinado à pura contemplação, de onde se fortalece o duplo sentido do verso “não deixa ninguém te pisar”.

As seguidas missões espaciais não apenas à Lua, mas a outros satélites, planetas e constelações dificilmente impediram os artistas de produzirem ideais, símbolos e metáforas. A grande maioria desses artistas já havia até mesmo testemunhado a conjunção potente e infernal de política e ciência que caíra sobre Hiroshima e Nagasaki, em 1945, que mereceu de Vinicius de Moraes a classificação de “a rosa radioativa, estúpida, inválida”. Conclusão: ao longo do século XX, foi conquistado o espaço, foi confirmada a possibilidade de fixar vida humana no cosmos e foi atingido o grau máximo de destruição no planeta, por meio da explosão nuclear.

Como já parecia anunciado em antiutopias como Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, e 1984 (1949), de George Orwell, a exploração do espaço se deu com a mesma intensidade da exploração das sociedades terrenas. Câmeras, sensores, o advento do GPS e da telefonia móvel tornaram fútil qualquer pretensão à privacidade. Debate-se agora quais seriam os limites à videovigilância, bem como a quem entregar a responsabilidade sobre as imagens e os dados das pessoas. Em 1997, no Reino Unido, ocorreu o primeiro protesto coletivo, com cerca de 200 pessoas. contra a rede de vigilância montada por meio de câmeras; passados dez anos, existiam 4 milhões e 200 mil câmeras no país, o que equivale a uma câmera para cada 14 pessoas. O lançamento recente do Google Street View radicalizou essa tendência invasiva: em vez de vasculhar o espaço sideral, bisbilhotar o espaço privado. De novo, houve protestos de quem se sentiu incomodado com os flagrantes em espaços públicos.

A poesia, uma vez mais, se viu atacada. Num artigo publicado este mês no jornal Libération sobre o Google Street View, mencionou-se que “de renúncia em renúncia, o tempo dos poetas estará morto, o instante furtivo dos bancos públicos” desaparecerá.

Será mesmo assim? A percepção fatalista dos avanços técnicos e científicos omite que a poesia se nutre, em boa parte, das relações que as sociedades estabelecem ao longo do tempo. Os poetas futuristas cantaram o progresso em altos brados, para perplexidade dos modernistas, que sempre foram céticos, descrentes e até negativistas. Mas a máquina de escrever, o cinema, a penicilina, a luz neon estão presentes em muitos poemas. Leia-se, por exemplo, “De Um Avião”, de João Cabral e Melo Neto:

A paisagem, ainda a mesma,

parece agora noutra língua.
Ou então “Viagem do Último Trem Subindo ao Céu”, no qual Joaquim Cardozo tematiza a Teoria da Relatividade. Ou Augusto de Campos a utilizar as novas opções da informática para compor poemas.

Cientistas e poetas – todos eles estão errados quando não encontram a linguagem comum e humana das suas melhores invenções.

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